quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

O Clube de Leitura - CRIANÇA


Abordagens sobre a Infância 
(Crónica SOMBRAS COMUNS para Palavra Fiandeira )

Por Carmen Ezequiel

“Eu creio que ele aproveitou, para a sua evasão, uma migração de pássaros selvagens.”

“Não são de modo nenhum parecidos com a minha rosa, ainda não são nada, disse-lhes ele. Ninguém vos cativou e vocês não cativaram ninguém. São como era a minha raposa. Era uma raposa parecida com cem mil outras. Mas fiz dela minha amiga e agora ela é única no mundo.”
In O Principezinho, Antoine de Saint-Exupéry

As crianças são admiráveis por natureza.
Ainda no outro dia estava eu com o filho de uns amigos meus (miúdo de 16 meses, diga-se!) e, que na sua inocente presença de explorador de cantos e recantos, corria de um lado para o outro, escondendo-se por entre os pés das cadeiras, mesas e afins ao mesmo tempo que, registando tudo o que nós fazíamos, nos imitava. Por vezes, agarrava-se às nossas pernas e aí permanecia até que fugindo novamente, corria para outro canto qualquer, rindo ou chorando conforme lhe apetecia.
Assim são as crianças. Simples. Espontâneas. Verdadeiras.
É tão fácil ser criança! (ou, talvez não? Quantas permitimos que morram de fome?)
Neste tema é inevitável que pegue no livro de Saint-Exupéry, O Principezinho, e realce a simplicidade com que o autor nos transmite a essência do que é ser verdadeiro. Invoca a infância como um apelo à memória dos adultos, que esqueceram as suas próprias pirralhices e o ser criança.
Fica fácil ser criança! (ou, porém, talvez não! Quantas deixamos vivendo na rua?)
Fica fácil para uma criança criar a imagem do Principezinho a evadir-se do seu planeta com a ajuda de pássaros selvagens. Para um adulto, isso não lhe cabe na mente. É impossível, mesmo que haja uma ínfima possibilidade desse impossível acontecer. Que mal há? Em sermos crianças de quando em vez? De sermos espontâneos, sem vergonha do que temos de dizer ou fazer? De se ser simples e verdadeiro em vez de se pensar se é insensatez.
Criança?! (quem me dera ser mais adulto e esquecer as maldades que lhes fazemos, as drogas que lhes oferecemos, as armas que lhes entregamos)
Basta um único olhar para nos cativar e quando isso acontece o nosso coração não pode mais ficar indiferente. Não pode ficar fechado, embasbacado, oprimido, tem de se libertar e deixar a luz, de uma criança, entrar.
Quando somos cativados, sabemos a importância que isso tem e que ficámos presos a essa sedução.
Aparte o cansaço, as longas horas sem dormir, a gritaria ou choradeira, as preocupações, os anseios e as rebeliões, as crianças deveriam (re) ensinar-nos a ser naturais; em que o amor e a capacidade de aceitar esse mesmo afeto pode surgir com simples palavras ou acções (um sorriso, um riso, uma gargalhada, um chorar de birra ou dor, um dormir sereno, uma correria, a gritaria ou o silêncio, uma brincadeira ou imitação…).
Tanto que nos oferecem as crianças… (porque acreditam).
E, o que lhes oferecemos nós, os adultos ingratos, insatisfeitos, envergonhados, terrivelmente complicados? (olhamos para o lado quando não nos agrada…)
Escrevo como adulta que sou, com mente de criança, para adultos que são e esconderam a vossa infância (porque continuo a acreditar).
Com rima para os pequenos. Sem rima para os grandes.
A mensagem inscrita pode, ou não, ser escrita por todos nós (enquanto não a escrevermos veremos, certamente, crianças a evadir-se deste mundo para um outro (deles) melhor).




 LeItUrA dE pErNaS pArA o Ar




Não foi de pernas para o ar, mas foi de joelhos que o Paulo declamou o poema CIDADE, de sua autoria, com o qual participou no passatempo da Câmara Municipal do Montijo "Cartas de Amor", uma iniciativa para assinalar o dia de S. Valentim.



 

Cidade
Paulo Carregosa






No início foi o beijo
Da Galega deu-me o cheiro
Doce abraço à beira Tejo
Foi largada sem morteiro

Ancorámos depois ao Cais
Nos Vapores, no Seixalinho
Fomos bote sem arrais
Melodia de Peixinho






Foste depois tão Mimosa
Ofereceste-me um soneto
Tudo em verso, nada em prosa
Na Praça, junto ao Coreto

Mas um dia veio o Gama
Marinheiro de respeito
Novos ventos, nova fama
Senti um rombo no peito

Já tinhas passado a cidade
Galega não eras mais
Em abono da verdade
Senti-me um, entre os demais

Fui ficando de Atalaia
Rezei, fiz oração
E à sombra doutra saia
Vi passar a procissão

Fez-me falta o outro tempo
Dos filmes, lá no Cinema
Transbordava o sentimento
Quando tudo era poema

Onde está a minha amada?
Que é feito dessa Galega?
Descobria-a na Tourada
A bater palmas, na pega

E eis que volta a paixão
De novo contigo, a pé
Lado a lado, mão na mão
No Moinho de Maré

Já não te deixo fugir
E agora é a valer
Sinto a maré a subir
Só contigo, até morrer!




LeItUrAs InDiViDuAiS


Porque o tema é CRIANÇA, o grupo que leu em seguida trouxe-nos duas crianças, e que bem que elas leram!

 

 


Diário Inventado de um menino crescido
José Fanha

Todos nós vivemos acontecimentos extraordinários, conhecemos pessoas especiais, presenciamos momentos irrepetíveis.
O problema é que, quando começamos a crescer, começamos também a esquecer muitos desses acontecimentos, dessas pessoas, desses momentos.
É para isso que servem os diários. Para guardar a nossa memória.
Um dia, resolvi chamar o menino que já fui à escrita, e pedi-lhe para escrever algumas das coisas de que ainda se lembrava: os colegas, a avó, o pai, as múltiplas e, por vezes, contraditórias aprendizagens de que é feito o nosso conhecimento.
E assim nasceu este diário que é um bocadinho verdadeiro e um bocadinho inventado e que foi escrito pelo menino já crescido que sou.



O Gato
Vinicius de Moraes

Com um lindo salto
Leve e seguro
O gato passa
Seis crianças que lêem em voz alta
Do chão ao muro
Logo mudando
De opinião
Passa de novo
Do muro ao chão
E pisa e passa
Cuidadoso, de mansinho
Pega e corre, silencioso
Atrás de um pobre passarinho
E logo pára
Como assombrado
Depois dispara
Pula de lado
Se num novelo
Fica enroscado
Ouriça o pêlo, mal-humorado
Um preguiçoso é o que ele é
E gosta muito de cafuné

Com um lindo salto
Leve e seguro
O gato passa
Do chão ao muro
Logo mudando
De opinião
Passa de novo
Do muro ao chão
E pisa e passa
Cuidadoso, de mansinho
Pega e corre, silencioso
Atrás de um pobre passarinho
E logo pára
Como assombrado
Depois dispara
Pula de lado
E quando à noite vem a fadiga
Toma seu banho
Passando a língua pela barriga


Helena

Ana Martins

Graciete

Fernanda Azevedo

Maria e Filipa















 

 

A Cascata
Bernardo Soares (heterônimo de Fernando Pessoa), in O Livro do Desassossego 


Agostinha
A criança sabe que a boneca não é real, e trata-a como real, até chorá-la e se desgostar quando se parte. A arte da criança é a de irrealizar. Bendita essa idade errada da vida, quando se nega a vida por não haver sexo, quando se nega a realidade por brincar, tomando por reais a coisas que o não são!
Que eu seja volvido criança e o fique sempre, sem que importem os valores que os homens dão às coisas nem as relações que os homens estabelecem entre elas. Eu, quando era pequeno, punha muitas vezes os soldados de chumbo de pernas para o ar... E há argumento algum, com jeito lógico para convencer, que me prove que os soldados reais não devem andar de cabeça para baixo?
A criança não dá mais valor ao ouro do que ao vidro. E na verdade, o ouro vale mais? A criança acha obscuramente absurdos as paixões, as raivas, os receios que vê esculpidos em gestos adultos. E não são na verdade absurdos e vão todos os nossos receios, e todos os nossos ódios, e todos os nossos amores?
Ó divina e absurda intuição infantil! Visão verdadeira das coisas, que nós vestimos de convenções no mais nu vê-las, que nós embrumamos de idéias nossas no mais directo olhá-las!
Será Deus uma criança grande? O universo inteiro não parece uma brincadeira, uma partida de criança travessa? Tão irreal...
Lancei-vos, rindo, esta idéia ao ar, e vede como ao vê-la distante de mim de repente vejo o que de horrorosa ela é (Quem sabe se ela não contém a verdade?).
E ela cai e quebra-se-me aos pés, em pó de horror e estilhaços de mistério...
Acordo para saber que existo...
Um grande tédio incerto gorgoleja erradamente fresco ao ouvido, pelas cascatas, cortiçada abaixo, lá no fundo estúpido do jardim.



O "Graxa"
José Gomes Ferreira, in O Mundo dos Outros

Aleguem embora as pessoas crescidas que, com o castigo e a humilhação das crianças, apenas pretendem salvá-las dos seus diabinhos de cabelos loiros e laços cor-de-rosa nos chifres, a verdade é que, nas caves de todas essas belas construções de defesa retórica, existe sempre a lama húmida e patinhante da crueldade.
Só esta palavra pode definir com justeza o livro de certos instantes terríveis em que as professoras, de férula em punho, fazem espirrar sangue das unhas dos pequenos seres confiados à sua guarda de educar, ou a deliberação gélida de alguns pais que, ao ouvirem a denúncia das consortes em voz mecânica de queixa, resolvem noturnamente:
Teresa
- Ah, está a dormir?... Pois amanhã ajustaremos contas.
E, de facto, na manhã seguinte, arrefecidos, bocas amargas, negridão de sono nos olhos e na alma - os animalejos pegam nas correias que lhes servem de cintos e, com a frigidez da sem-paixão, põem-se a açoitar os filhos, num fingimento de cólera que acaba por se embriagar do seu próprio ritmo de vingança vazia naquelas pobres vítimas fáceis onde tudo é permitido.
Depois, concluída a flagelação, os açoitadores, com a serenidade das manhãs bem começadas, ajeitam as gravatas, penteiam o cabelo, ensaiam nos espelhos o brilho humano dos olhos e, indiferentes aos vergões que deixaram, talvez para sempre, estriados nas almas e nas peles das crianças, que se contorcem para ali desesperadas de injustiça ("Caludinha, se não ainda apanhas mais"), vêm para a vida apertar as mãos ao mundo, leves de remorsos, ainda a atreverem-se a falar dos filhos - os miseráveis carrascos do crime impune!
(...)
- Palermas!


 



Menino do Bairro Negro
Zeca Afonso



Fernanda Quintino
Olha o sol que vai nascendo
Anda ver o mar
Os meninos vão correndo
Ver o sol chegar

Menino sem condição
Irmão de todos os nus
Tira os olhos do chão
Vem ver a luz

Menino do mal trajar
Um novo dia lá vem
Só quem souber cantar
Vira também

Negro bairro negro
Bairro negro
Onde não há pão
Não há sossego

Menino pobre o teu lar
Queira ou não queira o papão
Há-de um dia cantar
Esta canção
Olha o sol que vai nascendo
Anda ver o mar
Os meninos vão correndo
Ver o sol chegar

Se até dá gosto cantar
Se toda a terra sorri
Quem te não há-de amar
Menino a ti

Se não é fúria a razão
Se toda a gente quiser
Um dia hás-de aprender
Haja o que houver

Negro bairro negro
Bairro negro
Onde não há pão
Não há sossego

Menino pobre o teu lar
Queira ou não queira o papão
Há-de um dia cantar
Esta canção

Aqui fica o link para ouvir a música Menino do Bairro Negro




Os Filhos do Afecto
Torey Hayden



Sinopse

Sara

Depois de A Criança Que Não Queria Falar e A Menina Que Nunca Chorava, Torey Hayden regressa às lides literárias com casos de crianças problemáticas. Agora não é uma, mas são quatro as situações de meninos que sofrem desequilíbrios emocionais e que Hayden ajudou a ultrapassar e a transformar numa família coesa através da entreajuda e da partilha de experiências. As crianças foram deixadas ao seu cuidado porque mais ninguém queria lidar com a sua diferença. O grupo era composto por um rapaz autista que repetia as palavras das outras pessoas e nada mais dizia, uma menina de sete anos com danos cerebrais provocados por maus tratos familiares, um menino de dez anos traumatizado por ter visto a madrasta matar o pai e uma rapariga de doze anos que foi expulsa de uma escola católica quando ficou grávida. Com a ajuda da professora Torey Hayden, estas crianças conheceram o poder do amor e encontraram uma estrutura sólida sobre a qual se puderam desenvolver saudavelmente.



As Meninas
Vasco Graça Moura


As minhas filhas nadam. A mais nova
leva nos braços bóias pequeninas,
a outra dá um salto e põe à prova
o corpo esguio, as longas pernas finas:
Márcia

Entre risadas como serpentinas,
vai como a formosinha numa trova,
salta a pés juntos, dedos nas narinas,
e emerge ao sol que o seu cabelo escova.

A água tem a pele azul-turquesa
e brilhos e salpicos, e mergulham
feitas pura alegria incandescente.

E ficam, de ternura e de surpresa,
nas toalhas de cor em que se embrulham,
ninfinhas sobre a relva, de repente.










Os Putos
Carlos do Carmo/Ary dos Santos




Uma bola de pano, num charco
Um sorriso traquina, um chuto
Na ladeira a correr, um arco
O céu no olhar, dum puto.

Uma fisga que atira, a esperança
Um pardal de calções, astuto
E a força de ser, criança
Contra a força dum chui, que é bruto.

Paulo
Parecem bandos de pardais à solta
Os putos, os putos
São como índios, capitães da malta
Os putos, os putos
Mas quando a tarde cai
Vai-se a revolta
Sentam-se ao colo do pai
É a ternura que volta
E ouvem-no a falar do homem novo
São os putos deste povo
A aprenderem a ser homens.

As caricas brilhando, na mão
A vontade que salta, ao eixo
Um puto que diz, que não
Se a porrada vier, não deixo

Um berlinde abafado, na escola
Um pião na algibeira, sem cor
Um puto que pede esmola
Porque a fome lhe abafa, a dor.

Parecem bandos de pardais à solta
Os putos, os putos
São como índios, capitães da malta
Os putos, os putos
Mas quando a tarde cai
Vai-se a revolta
Sentam-se ao colo do pai
É a ternura que volta
E ouvem-no a falar do homem novo
São os putos deste povo
A aprenderem a ser homens

Mas quando a tarde cai
Vai-se a revolta
Sentam-se ao colo do pai
É a ternura que volta
E ouvem-no a falar do homem novo
São os putos deste povo
A aprenderem a ser homens



Oiçam o poema na voz do seu autor Os Putos



Ó Mãe, Mãe...
Eugénio de Andrade




Luís

É todo um mundo confuso de penetração difícil, tanto mais difícil quanto mais pretendo pô-lo claro, transparente. Não sei se houve primeiro lágrimas ou o som do harmónio. Em todo o caso lembro-me de duas casas - uma na Eira, outra no Adro. Sei que as lágrimas e as estrelas eram na casa da Eira e a música do harmónio na casa do Adro.
Minha mãe disse-me que nasci na casa do Adro, e só um pouco mais tarde, quando a família a abandonou de todo, nos mudámos para a casa da Eira. Ambas eram casas pequenas, térreas, com duas divisões, mais que suficientes para mãe e filho viverem. Ainda há poucos anos vi essas casitas onde eu e a minha mãe começámos a ser um do outro, e pareceram-me incrivelmente pequenas, mais pequenas que certas salas de brinquedos que os meninos ricos têm na cidade.
Em frente da porta de entrada havia uma arca enorme. Sei que nessas arcas arrumam os pobres tudo o que têm: a roupa do corpo, a roupa da cama, o milho para moer, o pão e faca embrulhados num pano linho grosseiro. Lembro-me do cheiro que sai da arca ao abrir - é um cheiro forte, são, de frutos naturais que a terra dá.
Ora um dia, quando me aproximei da arca - sabe-se lá para dar a entender a minha mãe que queria pão - estava lá em cima uma coisa que nunca tinha visto. Em bicos de pé, deitei-lhe a mão e puxei. Então o que aconteceu foi maravilhoso: de dentro saiu um som bonito, mais bonito ainda do que a voz de minha mãe, que certamente eu já ouvira cantar. E talvez não, talvez eu não tivesse ouvido ainda minha mãe a cantar. Minha mãe era nesse tempo uma mulher triste.
Da casa da Eira só me lembro do quartito que se seguia à cozinha. Um tabique separava-nos da casa da Ti Ana, uma velhota a quem a minha mãe às vezes me deixava a guardar. Foi nesse quarto que a minha mãe me ensinou a rezar:

Senhora Sant`Ana,
 tapai-me cum véu,
que sou pequenino,
levai-me prò céu.

Mas eu gostava mais de me meter com a velhota do que das orações:
- Ó Ti Ana! Ti Ana! Faça-me um favor!
- Que é? - perguntava a boa mulher, fingindo ignorar a resposta:
- Empreste-me a sua pele para fazer um tambor!

Mas isso foi bastante depois. Antes das orações e das brincadeiras com a Ti Ana, lembro-me das lágrimas. Nunca mais voltei a chorar assim.
Certa manhã acordei sozinho em casa. Acordei a chorar. - Ó mãe, mãe... -Mas a mãe não vinha. Não havia mãe. Havia só porta fechada, - Ó mãe, mãe... - E a casa deserta. Pelas frinchas largas da porta via a manhã lá fora. Era uma manhã de sol quente talvez de Julho, talvez de Agosto. Devia haver medas de palha na eira em frente. Mas os meus olhos mal viam, estavam rasos de água e de angústia. - Ó mãe, mãe... - E de repente, na manhã clara, começaram a cair estrelas pequeninas, estrelas verdes, vermelhas, estrelas de oiro. As lágrimas caíam-me pela cara. - Ó mãe, mãe... - O nariz esmagado contra a porta, os olhos muito abertos, vendo através das frinchas as estrelas caindo, umas atrás das outras. - Ó mãe, mãe...
E ninguém me abriu a porta para apanhar as estrelas. Nem mesmo tu, mãe, que a essas horas andavas a ganhar o pão para a boca daquele que hoje te oferece estes versos.

O Luís traz-nos sempre artigos especiais feitos por ele. 
Aqui está mais um. 
Curiosidade: é feito com papel de serpentina.




A Criança que Não Queria Falar
Torey Hayden


Eu devia ter sabido.
O artigo era pequeno, uns meros parágrafos, enfiados na página seis, por baixo da banda desenhada. Referia uma menina de seis anos que tinha raptado uma outra criança do bairro. Naquela fria noite de Novembro levara o rapazinho de três anos, atarão a uma árvore de um bosque próximo e pegara-lhe fogo. O menino encontrava-se, agora, em estado crítico no hospital. A menina fora posta sobre custódia.
Li o artigo da mesma forma casual com que percorro o resto do jornal e invadiu-me um vago sentimento de indignação sobre aonde-é-que-este-mundo-vai-parar. Mais tarde, nesse mesmo dia, voltou a ocorrer-me, enquanto lavava a louça. Podia meter-se uma criança de seis anos na prisão? Tive visões kafkianas da menina tratada com brutalidade na nossa velha e sinistra prisão da cidade. Pensei no caso de uma forma anónima, impessoal. Mas devia ter sabido.
Devia ter sabido que nenhuma professora desejaria na sua aula uma aluna de seis anos com tais antecedentes. Nenhum pai desejaria uma criança destas na mesma escola dos seus filhos. Ninguém desejaria uma criança assim à solta. Devia saber que ela acabaria por vir parar à minha aula.
(…)
Na manhã seguinte, dispus-me a entrar em acção. Cheguei à escola munida de três lençóis de banho, uma barra de sabão, champô e um frasco de loção de bebé. Primeiro, fui verificar a caixa onde estava a roupa que a igreja do bairro nos arranjava. Embora a escola em que me encontrava se situasse num bairro abastado, acolhia um número bastante de crianças como aquelas da minha sala para aceitar este tipo de doação. Eu conservava a minha caixa no meu interior. Tudo grande demais para a pequena Sheila. Depois de descobrir um par de calças de bombazina e outra t-shirt, voltei à minha sala.
Carmen
Quando Sheila chegou, eu estava a deixar correr a água para o lava-louça, ao fundo da sala. O lava-louça era grande, espaçoso, do tamanho dos que há nas cozinhas e achava que conseguiria meter uma boa parte dela lá dentro, pois não tínhamos duche. Mal me viu, Sheila livrou-se rapidamente do casaco e aproximou-se a correr. Era a primeira vez que a via avançar tão depressa para mim, desde que chegara. Abriu muito os olhos, cheia de curiosidade, quando se inclinou para ver o que eu estava a fazer.
- Ires pôr ganchos no meu cabelo, agora?
- Podes apostar. Mas primeiro, vamos dar-te um tratamento de beleza. Vamos lavar-te dos pés à cabeça. O que achas?
- Dói?
- Não, pateta. – Ri-me. – Não me parece.
Pegou no frasco de loção para bebé e destapou-o. – Para que servir? Comer-se?
- Não. É loção – respondi, surpreendida. – Põe-se no corpo.
Um repentino contentamento estampou-se-lhe no rosto.




Para terminar e porque ser criança é sorrir e fazer sorrir, leu-se:


SER CRIANÇA
Carmen Ezequiel


Todos nós, um dia, fomos crianças. E, que bom que é recordar a nossa infância!
Tempos difíceis para uns, melhores para outros, mas é uma fase única (como tantas outras) que faz e fez de nós os adultos de hoje.
Ser criança é muito mais do que ser pequeno.
É ser livre!
É rir e chorar. É aprender e, ainda assim, nos ensinar. É brincar, jogar; ser adulto pequenino ou criança bebezinho. É descobrir o desconhecido, crescer devagarinho, sem pressas pelo caminho…
Quando olhamos as nossas crianças vemos o amanhã e, por isso, cabe a cada um de nós, adultos (pais, irmãos, professores, educadores, avós, … ensinar-lhes, pacientemente, as leis da vida.
Não é bater ou castigar, criticar ou ficar indiferente, premiar pela ausência; é ter atenção e ficar alerta, ser tolerante e compreensivo. É promover o diálogo, permitir o sonho e a fantasia, dar a mão e um carinho em todos os novos dias. Impulsionar o sentido crítico e o misticismo do que se desconhece.
As crianças têm muito a aprender. Nós, adultos, temos muito a ensinar-lhes.
As crianças têm muito a receber. Nós, adultos, temos de dar com paixão, compreensão, amor e sinceridade.
As crianças têm o coração puro e livre; têm muito a dar. Nós, adultos, temos de (re)aprender a receber.
Observemos, com atenção, as nossas crianças. Analisemos o contributo que nós, adultos, estamos a dar ao amanhã.
Será que tudo está bem? Será que estamos a dar o nosso melhor?



Maria e Filipa


Cem Poemas Portugueses sobre a Infância
José Fanha, José Jorge Letria



As manas Sara e Fernanda



Os adultos foram crianças outra vez e rimos à gargalhada com os TRAVA-LÍNGUAS ou DESTRAVA LÍNGUAS? que fizeram a alguns uma confusão tremenda, a outros, nem por isso.


















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